terça-feira, 29 de dezembro de 2009

tudo por não estarem mais distraídos.

"Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."


Caio Fernando Abreu


A.C.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Estou cansada

"Estou cansada de sonhar,
de desejar,
de te querer e não te ter,
de nunca saber se pensas ou não em mim,
se à noite adormeces com saudades no peito ou te deitas com outras mulheres.

Depois de todas as palavras e de todas as esperas,
fiquei sem armas
e sem forças.
Sobra-me apenas a certeza de que nada ficou por fazer
ou dizer,
que os sonhos nunca se perderam,
apenas se gastaram com a erosão do tempo
e do silêncio."

Margarida Rebelo Pinto

A.C.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

No meu baú

No meu baú de alegrias
guardo um seixinho do rio
(assim já não sente frio)
duas contas de um colar
que achei quando estava a brincar,
três fitas de seda amarela
(p'ra com elas me alindar
e o meu retrato a aguarela
alguém um dia pintar
)
Mas também guardei, faz tempo,
quatro ondas do oceano
cinco nuvens brancas, brancas,
seis farrapinhos de vento,
sete grãos de pensamento,
oito sonhos por sonhar,
nove sorrisos futuros...
e dez mapas de um tesouro...
que nunca hei-de encontrar.


A.C.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A monogamia está em crise

O meu avô, sempre com um brilhozinho característico nos olhos, costumava contar como conheceu a minha avó. Bastou uma troca de olhares. Não se conheciam, nunca tinham falado, nunca tinham estado próximos fisicamente, mas naquele momento em que os seus olhares se cruzaram pela primeira vez, o meu avô teve a certeza que aquela seria a sua futura esposa, mãe dos seus filhos, companheira de uma vida inteira. A minha avó, com aquela timidez que lhe era peculiar, contava que corria, todos os finais de tarde, para a linha do eléctrico, de onde o meu avô lhe atirava flores, sorrisos e cartas de amor. E, assim, permaneceram enamorados, durante meses, trocando sorrisos acanhados. Amavam-se sem nunca sequer se terem beijado.
Sonhado por todos as jovens, o momento de subir ao altar, era, naquele tempo, um dos principais pontos de realização pessoal, mais do que mera imposição social. Os valores de partilha e confiança, que se agregavam à ideia de casamento, auxiliavam na criação de uma relação duradoura, capaz de educar uma família basta. (Mas hipocrisias e preconceitos à parte, será que os ditos monogâmicos, no seu dia-a-dia, não costumavam sentir uns suorzinhos súbitos, acompanhados de imagens mentais pouco fiéis à sua relação de exclusividade?)
Hoje não se acredita no “até que a morte nos separe”. Ter uma relação de exclusividade e confiança perdeu-se na geração dos meus avós. Já não se acredita no casamento e o ideal de construir uma família parece “fora de moda”. Usam-se o cansaço e o excesso de trabalho como desculpas para não se investir numa relação a longo prazo. O “viveram felizes para sempre” limita-se a cliché de contos de fadas.
O tempo em que conversas de quatro horas voavam e em que dias separados pareciam semanas está a esgotar-se, por falta de tempo. Os jardins andam desertos de casais apaixonados, a união já não é assinalada por mãos entrelaçadas, já não se guardam as frases feitas dos papéis que enrolam os bombons. A palavra “nós” está a cair em desuso e o amor só existe no presente. Não é incomum que alguém não se recorde do número de parceiros que já teve, nem é invulgar que se mantenham várias relações em simultâneo. A monogamia está em crise.
Será só nas comédias românticas que as leis da física parecem precisar de reformulação, de modo a englobar os efeitos peculiares da paixão? Num mundo com milhões de pessoas a monogamia será pedir demais?

Eliana Macedo